O último sorriso de Molière
Existe maior subversão de expectativa do que morrer em cima do palco?
Estou lendo o recém-lançado Comedy samurai: forty years of blood, guts, and laughter, uma autobiografia do comediante, roteirista e diretor Larry Charles. Mas não escrevo esse texto para comentar o livro em si. Quero falar de uma passagem específica. Em determinado momento, Charles cita o ousado comediante Dick Shawn, cujo humor anárquico talvez seja melhor exemplificado pela vez em que, durante um roast, não contou piadas. Em vez disso, encheu a boca com sopa de ervilha e fingiu vomitar em si mesmo e nos convidados. Shawn era um comediante que desafiava expectativas e subvertia o bom-senso.
Em 1987, durante um show na Universidade da Califórnia, Dick Shawn contava uma piada sobre uma guerra nuclear estourando naquele exato momento: "Imaginem isso, a guerra ocorrendo lá fora e nós aqui, nesse teatro. E se nós fôssemos os últimos quinhentos sobreviventes do planeta?" Aí, Dick Shawn desabou. A plateia ria enquanto Shawn se mantinha em silêncio, completamente imóvel. Espectadores gritavam: "Vamos roubar a carteira dele!" Mais risos. Cinco minutos se passaram. A plateia, habituada à comédia incomum de Shawn, estava atônita. Riam, mas já estavam impacientes. Enfim, um contrarregra subiu no palco e chamou um médico. Dick Shawn havia sofrido um infarto e estava morto.
Dick Shawn talvez seja mais conhecido por ter interpretado o ator Lorenzo Saint DuBois, o "LSD", intérprete de Hitler no filme The producers (1967), de Mel Brooks. Curiosamente, Shawn não foi o único membro do elenco a morrer no palco. Em 1977, Zero Mostel (que no filme interpreta o inescrupuloso Max Bialystock) teve um aneurisma enquanto atuava numa montagem de O mercador de Veneza, de Shakespeare.
O relato de Larry Charles sobre a morte de Dick Shawn me fez lembrar do documentário Albert Brooks: Defending my life (2023). Nele, o ator e diretor Albert Brooks fala sobre a morte do pai, o comediante Harry Einstein. Em 1958, Einstein foi convidado a participar de um roast em homenagem a Lucille Ball e Desi Arnaz. Após seu monólogo, que foi muito bem recebido, o mestre de cerimônias comentou: "Toda vez que ele termina, eu me pergunto como assim ele não tem um programa no horário nobre da TV?". Einstein se virou para Milton Berle, que estava sentado a seu lado, e perguntou: "É mesmo, como assim?". E caiu em cima de Berle. Não sabendo como reagir, Berle gritou: "Tem algum médico na plateia?". Como aquele era um evento beneficente em prol de hospitais de caridade, havia, é claro, vários médicos na plateia. Logo, o grito de socorro foi interpretado como punchline e a plateia riu. Harry Einstein, no entanto, havia sofrido um infarto e estava morto.
Destino similar teve outro comediante, Tommy Cooper, em 1984, quando se apresentava num programa de TV britânico. Ele falou com a bela assistente de palco e colapsou. Ela sorriu para ele, imaginando que Cooper estivesse fazendo graça, daquele jeito que fazem graça os comediantes quando interagem com uma mulher bonita. Olha lá esse palhaço fingindo um desmaio. Também a plateia dava risada quando ele caiu para trás. E Cooper caiu morto no palco, observado por uma audiência de doze milhões de pessoas.
As histórias de Shawn, Einstein e Cooper nos lembram que, mesmo numa situação grave, é difícil romper o pacto firmado entre um comediante e sua plateia. Uma vez que tem início o espetáculo de comédia, os espectadores são condicionados a observar o mundo por esse viés e tudo se torna objeto de riso. Sendo a comédia uma arte de subverter expectativas, o público se prepara para esperar de tudo, inclusive o inesperado. Existe maior subversão de expectativa do que morrer em cima do palco? A morte é a interrupção de tudo. Imagine se executada em público, observada por quinhentas pessoas, transformando uma noite de risos no cenário de um trauma? Ha. Ha. Ha.
Mas a morte no palco não é exclusiva aos comediantes.
Sigmund Neuberger nasceu em 1871 na Alemanha e adquiriu fama como ilusionista sob a alcunha O Grande Lafayette. Seus espetáculos envolviam números elaborados com uso extenso de efeitos especiais, diversos assistentes de palco e inclusive animais. Em 1911, durante um show no Empire Palace Theatre, em Edinburgo, a queda de uma lanterna provocou um incêndio no palco, fazendo com que o cenário se desintegrasse em chamas em poucos minutos. A plateia, encantada pelos efeitos especiais do adorado ilusionista, não se mexeu. Somente quando a orquestra começou a tocar "God Save the King" é que os espectadores perceberam que havia algo errado e deram início à evacuação do teatro.
Onze pessoas morreram no incêndio, incluindo Lafayette. Seu corpo foi enviado a Glasgow para cremação. Durante a limpeza das ruínas do teatro, dias mais tarde, um grupo de trabalhadores encontrou o corpo de uma décima-segunda vítima. Vestia as mesmas roupas de Lafayette. Em suas mãos, os anéis do mágico. Afinal, o corpo enviado para Glasgow não era o do Grande Lafayette, mas de um dublê. Quando foi encontrado nos escombros do Empire Palace, foi como se dissesse abracadabra e, por fim, revelasse o seu último truque.
Não me interessam tanto as mortes acidentais, os grandes sinistros e suicídios espetaculosos. Mas a história do Grande Lafayette é boa demais para ficar de fora. Retornemos, portanto, ao tipo de morte que me interessa aqui: súbita, por causas naturais, justamente num momento em que o artista está diante de sua audiência.
Em 1871, o cantor de ópera Armand Castelmary foi ovacionado de pé por sua intensa atuação numa montagem de Martha na Metropolitan Opera de Nova York. Castelmary estava, na verdade, infartando. E morreu assim que as cortinas se fecharam. Em 1888, outro cantor de ópera, Frederico Federici, interpretava Mefistófeles numa montagem de Fausto em Melbourne, na Austrália. Ele infartou ao se retirar do palco, por meio de um alçapão, na conclusão de sua última cena. Foi levado ao camarim e morreu. O elenco, ao saber do ocorrido, achou estranho. Federici, afinal, estava com eles no palco durante os últimos aplausos. Desde então, conta-se que seu fantasma assombra o Princess Theatre. Um terceiro cantor de ópera, Aroldo Lindi, caiu morto no meio de Pagliacci, numa apresentação em San Francisco em 1944, imediatamente após ter cantado "Vesti la giubba".
Em 1958, o ator Gareth Jones integrava o elenco da telepeça Underground, produzida pela ITV e trasmitida ao vivo para todo o Reino Unido. Em determinado momento da história, seu personagem sofria um infarto e morria. Durante o intervalo, entretanto, o próprio Jones infartou enquanto era maquiado.
O organista francês Louis Vierne morreu durante uma apresentação em Notre Dame em 1937. Preparava-se para tocar o último tema do concerto, mas inclinou-se para a frente, teve um espasmo e caiu no chão, com o pé ainda preso no pedal, fazendo ecoar um renitente som contínuo em mi menor nas paredes da catedral.
Em 1763, Molière participava de uma performance de sua peça mais recente, O doente imaginário. Tuberculoso, interpretava o hipocondríaco Argan. No meio da apresentação teve um forte acesso de tosse hemorrágica e colapsou no palco. Conforme indicado por relatos da época, no entanto, o dramaturgo conseguiu terminar o espetáculo. Morreria horas depois, em sua casa. Gosto de imaginar que Molière, nos segundos que precederam sua morte, não viu sua vida inteira passar diante de seus olhos. Em vez disso, teve flashes do futuro, testemunhando uma procissão de mortos: Castelmary, Lafayette, Shawn, Einstein, Vierne, Lindi. Viu todos os infartos e derrames, viu audiências em êxtase, contemplando a banalidade do sublime em gestos derradeiros que conduziam ao fim inevitável. Gosto de imaginar que morreu sorrindo, com os dentes ensanguentados.
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A primeira vez que vi o vídeo da morte de Tommy Cooper, me perguntei como demoraram tanto para perceber. Você explica muito bem.