Tempos atrás eu fiz uma playlist dedicada às primeiras faixas dos álbuns de estreia de artistas que eu gosto. Nela, encontra-se a maravilhosa “Tennis Court”, primeira faixa de Pure heroine, o álbum de estreia da cantora neozelandesa Lorde. Mais do que uma primeira faixa de um álbum de estreia, penso em “Tennis Court” como uma declaração de propósito, tão singela quanto ousada. Basta ouvirmos os primeiros dez segundos: o acorde solitário de sintetizador, programado num pad metálico que também lembra o som de inicialização do Windows, aí a voz da Lorde, monótona, mais dois acordes no mesmo pad, descendendo.
Enfim, um beat minimalista, reminiscente daquele tipo de música que se convencionou chamar downtempo. E o que Lorde diz nesse verso é, na verdade, uma pergunta, dirigida ao ouvinte: Don't you think that it's borin' how people talk?
A monotonia na voz da cantora evidencia esse tédio, deitado na cama de minimalismo eletrônico: três acordes descendentes e um beat, que remetem a produções mais sofisticadas e exuberantes da música pop, porém destilados numa ressaca fantasmagórica. Quando Lorde pergunta ao ouvinte se não é um tédio como as pessoas falam, a pergunta melancólica vem carregada pela melancolia das manhãs seguintes: não há hedonismo, apenas a constatação de que assim é a vida, tudo é uma bobagem e as pessoas são um tédio. É uma ressaca individual, mas também cultural.
O ano é 2013 e Lorde, aos dezessete anos, estabelece uma cisão geracional com o clima dominante em boa parte da música pop dos anos 2000: consumo, riqueza, deslumbre e otimismo. Em dez segundos, Lorde estabelece uma antítese para o clipe do Killers para “Mr. Brightside”. O golpe de misericórdia vem depois: Everything's cool when we're all in line for the throne / But I know it's not forever.
(O próprio nome “Lorde” caçoa da ideia de nobreza e “Royals”, terceira faixa de Pure heroine, torna evidente a ideia presumida aqui).
Lorde manifesta exaustão, mas também uma vontade de superar a banalidade de tudo. Como? Com a própria catarse da música pop: It's a new art form, ela argumenta. Showin' people how little we care. Mostrar que não se importa é uma contradição inerente ao pop, ao punk, à música que se enxerga confrontativa. É preciso não se importar com nada, mas se importar o suficiente com os outros para ostentar que não se importa. A postura do ouvinte é de eu contra todos, a união entre mim e o artista que eu gosto. Afinal, ele é meu patrono e meu santo padroeiro. E nós vamos acabar com tudo. É preciso prometer a destruição do establishment para dominá-lo por completo.
A música explora uma diversidade de contradições. A central, me parece, é: We're so happy, even when we're smilin' out of fear. Afinal, é preciso ser feliz mesmo em tempos incertos, diante dos efeitos de uma crise econômica, num mundo que parece rumar novamente à guerra. É preciso ser feliz, entregar-se à música e dançar, pelo menos enquanto dura uma única canção. É a ilusão oferecida pela música pop desde sempre. É o que fez o Ultravox nos anos da Guerra Fria: Dancing with tears in my eyes / Weeping for the memory of a life gone by.
A quadra de tênis, imagem que dá título à canção, sempre me apareceu assim: à noite, deserta, no escuro. De súbito, aparece um grupo de adolescentes para ouvir música e falar merda enquanto bebe uma garrafa de vodca e fuma uns cigarros roubados. Enfim. Eu penso nisso porque já me aconteceu de ser adolescente e beber vodca à noite numa quadra de tênis deserta (a vida é irada, diria o Pedro Scooby).
De qualquer modo, essa imagem, a quadra de tênis deserta, me lembra também a piscina vazia tão recorrente na ficção de J. G. Ballard: com a decadência de um mundo, o que resta é o vazio das infraestruturas abandonadas, deixadas de herança para a criação de um novo mundo (ou nova forma artística). É um ciclo de destruição e criação, inerente à sucessão de gerações, tanto na arte quanto na vida. Primeiro somos os adolescentes bebendo vodca e depois a ausência.
Enfim. Pure heroine é incrível. No álbum seguinte, Melodrama (2017), ela expande a própria linguagem com uma sucessão perfeita de canções que demonstram uma consciência elevada da própria escrita. De modo geral, quando ouço Lorde, tenho a impressão que todas as suas composições são tanto sobre a vida quando sobre a própria forma da canção pop.
Assim, numa faixa como “Writer in the dark”, em que ela reivindica o papel de escritora para articular a dificuldade do outro de viver um relacionamento com ela própria. E a compositora, no ato de escrever uma nova canção, acaba recorrendo ao repertório de todas as canções que já ouviu. No refrão, Lorde canta como Kate Bush. E diz, evocando tanto o estilo de Leonard Cohen quanto Paul McCartney no piano sendo visitado pela Virgem Maria: But in our darkest hours, I stumbled on a secret power / I'll find a way to be without you, babe.
(Eu amo esse verso, aliás. E amo a maneira como ela canta esse verso. E amo a pausa, necessária, que existe após esse verso).
Ela diz adeus ao outro, que vá ser um bom homem para outra mulher, mas a canção sofrida é o que fica para trás. A compositora foi destrutiva no relacionamento, mas a partir da destruição criará uma nova obra. E é preciso se perguntar: será mesmo que ela foi tão destrutiva assim? Talvez ela esteja elevando a própria crueldade e a própria inadequação, simplesmente para criar uma composição ainda mais intensa e ainda mais sofrida. Em algum nível, tudo é Melodrama.
(Enfim. Eu gosto muito da cantora Lorde.)
Meu novo livro, Frankito em chamas, já está em pré-venda e é possível adquiri-lo na Amazon ou no site da Todavia. E o novo álbum da Lorde, Virgin, será lançado na próxima sexta-feira, dia 27.
Valeu! Estou me permitindo escrever uns negócios mais soltos, sem pensar muito, deixando o texto pensar por mim haha
Teus últimos textos estão muito bons. Já dá pra pensar num livro novo, de crônicas, ensaios breves de não-ficção. Seria paulada, hein.